O que poderá acontecer a 6 de Janeiro de 2021 no Congresso Americano?


Quem não gostaria de estar na bancada, a assistir?

Antes de mais alguns considerandos:

. Foi-me solicitado um texto sintético. Sucede que se há coisa que o legislador dos E.U.A. não é, quer ao nível Constitucional (em particular nas sucessivas Emendas à Constituição) quer ao nível da legislação ordinária, é sintético. Por essa razão não poderei, como prefiro fazer por uma questão de absoluta transparência, “trabalhar” a partir da reprodução integral das normas relevantes, optando antes por deixar as ligações para as mesmas, reproduzindo tão só o meu resumo e interpretação das mesmas. Por essa razão, também, foram deixadas de fora algumas questiúnculas jurídico-constitucionais que, embora relativamente relevantes, tornariam o texto demasiado denso.

. A natureza federalista dos E.U.A. é fundamental para perceber, interpretar e aplicar os normativos eleitorais. Essa natureza, no que toca às eleições presidenciais, está especialmente vertida no artº II, Secção 1, Cláusula 2 e 3, quando permite a cada um dos Estados da federação escolher a forma como chega à determinação dos Grandes Eleitores que indica para compor o Colégio Eleitoral - Article II | USConstitution | US Law | LII / Legal Information Institute.

. Não sou, de forma alguma, especialista em direito eleitoral dos E.U.A. Que isso seja cristalinamente claro. Limito-me a desenvolver a minha especial curiosidade e admiração por esse país o que, nos tempos que correm, implica olhar, e tentar perceber, com particular interesse, o corpo normativo que informa e enforma o procedimento eleitoral norte-americano. Ademais, procurarei ser totalmente analítico tentando sempre apresentar as diferentes interpretações/soluções jurídicas.


. A natureza bizantina e gongórica da legislação eleitoral norte-americana faz-me desejar que os titulares dos cérebros que a produziram fossem pendurados pelos testículos por toda a eternidade (e, nota bene, eternamente vivos). Basta considerar que o § 15, do 3 U.S. Code, o mais importante por condensar o Electoral Count Act of 1887, é um monstruoso e labiríntico texto com 807 palavras, sem parágrafos!! 


Sem mais demoras.


Depois de o Colégio Eleitoral ter feito a sua votação e indicado os vencedores para o cargo de Presidente e Vice-Presidente, o Congresso Federal tem, no entanto, um papel a desempenhar.


Este procedimento está codificado, ou positivado, normativamente, nos parágrafos 15 a 21, inclusive, do Capítulo I, do Título 3 do U.S. Code - 3 US Code Chapter 1 - PRESIDENTIAL ELECTIONS AND VACANCIES | US Code. - correspondendo à transposição, para o United States Code, do Electoral Count Act de 1887


Assim, no dia 6 de Janeiro do próximo ano, reúne-se, às 13:00 H o Congresso (ou seja, o Senado e a Casa dos Representantes) na sala da Casa dos Representantes a fim de proceder à contagem dos votos eleitorais.


Coloca-se, antes de mais uma questão - que Senado e Casa dos Representantes serão intervenientes neste procedimento?


A resposta está dada na seção 1.ª da, 20ª Emenda Constitucional ao Artigo I, secção 4.ª da Constituição - Os Senadores e os Representantes cessam funções ao meio dia do dia 3 de janeiro e, nesse mesmo dia e hora, entram em funções os Senadores e Representantes eleitos nas eleições de Novembro de 2020, os quais fazem os respectivos juramentos e estabelecem a composição dos diversos Comités. Portanto será o “novo” Congresso (Senado e Casa dos Representantes) a proceder à contagem.


Ocorre aqui ligeira perturbação. Os lugares Senatoriais relativos ao Estado da Geórgia não estarão preenchidos até ao dia 3 de Janeiro, na medida em que a 2.ª volta apenas ocorrerá no dia 5 de Janeiro de 2021. E o mais natural é que, mesmo no dia 6 de Janeiro, às 13:00 H, esses dois lugares, ambos preenchidos, no “antigo” Senado, por Republicanos, ainda não estejam definidos por não ter decorrido tempo suficiente para a certificação dos resultados da 2.ª volta. Entendo, em face do que vai disposto no § 2, da XVII Emenda ao artigo 1.º, secção 3.ª, da Constituição (17th Amendment | US Constitution | US Law | LII / Legal Information Institute), que se manterá a Senadora Kelly Loeffler, na medida em que a mesma já havia sido indicada pelo Governador da Geórgia como substituta do retirado Senador Johnny Isakson apenas concorrendo para “confirmação” da sua nomeação, o mesmo não sucedendo, mantendo-se vago, o lugar que pertencia a David Perdue-Jon, na medida em que, como Senador eleito e estando o seu lugar sujeito à reeleição, “perde” o mesmo a 3 de Janeiro.


Teremos, deste modo, um Senado com maioria Republicana - 51 (R)/48(D) - e uma Casa dos Representantes com uma maioria Democrata - 222(D)/221(R).


A este Congresso, assim reunido, preside o Vice-Presidente incumbente (Mike Pence) com o poder de “preservar a ordem” e dirigir os trabalhos - 3 U.S. Code § 18 (doravante designado como Presidente do Congresso).


Até ao dia 23 de Dezembro (3 U.S. Code § 12) os resultados da votação do Colégio Eleitoral, assim como todos os certificados e "papéis" (lamento, mas é o termo usado pelo legislador), já foram entregues, selados, ao Vice-Presidente e, nesta reunião do Congresso, o mesmo procederá à abertura dos mesmos, entregando-os aos “contadores” (“tellers”) - quatro, dois eleitos pelo Senado e dois Eleitos pela Casa dos Representantes - os quais, depois de os contarem, entregam o resultado ao Presidente do Congresso, que os anuncia, sendo tal anúncio considerado como declaração suficiente das pessoas, se algumas, eleitas Presidente e Vice-Presidente.


Aqui entramos já no domínio da especulação jurídico-política.


Conforme acima se escreveu, ao presidente do Congresso é atribuído, expressamente, apenas, o poder de “preservar a ordem” e dirigir os trabalhos - 3 U.S. Code § 18. No entanto há - academicamente - quem sustente que o seu poder é mais “substantivo”.


Repare-se que o “Congresso” não é, verdadeiramente, um corpo legislativo. São dois - Senado e Câmara dos Representantes - que operam sempre em separado, por definição, não decidindo nada em conjunto. Poderá sustentar-se que o texto da XII Emenda da Constituição quando determina que «[t]he President of the Senate shall, in the presence of the Senate and House of Representatives, open all the certificates and the votes shall then be counted», permite uma interpretação que atribua mais poder substantivo ao Presidente do Congresso. Na verdade, o Presidente do Congresso tem a exclusiva autoridade constitucional para determinar que certificados abrir e, assim, que votos contar, mais sucedendo que ele é o único “oficial” do governo a quem é dado um papel activo no processo de abertura dos certificados e contagem dos votos eleitorais dos Estados. Neste momento do processo o Senado e a Câmara dos Representantes apenas observam, nada mais, precisamente porque inexiste qualquer previsão constitucional que lhes permita actuar, decidir ou legislar como um corpo só. Ou seja, é possível interpretar-se a XII Emenda no sentido em que o Presidente do Congresso é a única e singular autoridade que pode decidir que votos de que Estado devem ser contados (para um estudo mais aprofundado sugiro a leitura de “Is the Electoral Count Act Unconstitutional?”, 80 N.C. L. REV. 1653, 1688–90, 1699–1701 (2002)).


Pode, inversamente, contra-argumentar-se com a “The Necessary and Proper Clause", ínsita no Artigo I, secção 8, cláusula 18, da Constituição (Clause XVIII | US Constitution Annotated) da qual se pode retirar que ao Congresso cabe uma ampla autoridade legislativa para preencher as lacunas e clarificar as ambiguidades que existem na redacção da XII Emenda não sendo razoável deixar nas mãos de uma única pessoa o poder exclusivo de resolver disputas sobre os votos eleitorais de cada Estado, precisamente porque violaria o princípio Federalista (para uma análise mais profunda da questão pode recorrer-se ao livro de Edward B. Foley, “Ballot Battles: The History of Disputed Elections”, Oxford University Press, 2016, em especial, quanto às várias interpretações, argumentos e contra-argumentos da XII Emenda, págs. 125 a 132). Sendo razoável considerar que a maioria dos constitucionalistas americanos se inclinam mais para esta segunda interpretação trata-se, claramente, de matéria que, a surgir a questão, terá, penso, que ser dirimida pelo SCOTUS.


Claro que esta questão apenas se colocará se chegaram ao Presidente do Congresso, relativamente a um ou mais Estados, diferentes, em cada um dos Estados, certificados.


Ora, tanto quanto se sabe, todos os Governadores de cada um dos Estados certificaram os resultados das votações dos respectivos Grandes Eleitores. E desconhece-se que tenha ocorrido uma “certificação” diversa por banda de algum dos corpos legislativos de qualquer dos Estados. De todo modo, e quanto a esta possibilidade (uma certificação, por banda dos corpos legislativos estaduais, diversa da que foi feita pelos Governadores, com base nos resultados eleitorais “aceites”), a decisão do SCOTUS em Bush v. Gore, 531 U.S. 98 (2000) - Bush v. Gore :: 531 US 98 (2000) :: Justia US Supreme Court Center - poderá colocar problemas de precedente porquanto na mesma se escreveu, entre o mais, que «[t]he individual citizen has no federal constitutional right to vote for electors for the President of the United States unless and until the state legislature chooses a statewide election as the means to implement its power to appoint members of the electoral college[.]» mas que ««[w]hen the state legislature vests the right to vote for President in its people, the right to vote as the legislature has prescribed is fundamental…/… [h]aving once granted the right to vote on equal terms, the State may not, by later arbitrary and disparate treatment, value one person's vote over that  of another». Ou seja, muito resumido, a partir do momento em que determinado Estado decidiu estabelecer o modo de escolha dos Grandes Eleitores em função do resultado de um sufrágio universal, não poderá utilizar os respectivos corpos legislativos para fazer escolha diversa.


No entanto, admitindo a possibilidade de chegarem ao Presidente do Congresso, mais do que um elenco de Grandes Eleitores do mesmo Estado, com diversos sentidos de voto (doravante “certificados concorrentes”), nada impede, politicamente, aquele, de contar uns e não contar outros e existe ainda uma outra possibilidade (porque, neste estado de coisas, tudo é possível) que é a de Pence, na sua qualidade de Presidente do Congresso, e dentro daquela interpretação mais ampla dos seus poderes, nessa qualidade, declarar totalmente irrelevante o 3 U.S.C §15, e decidir desconsiderar os votos, por exemplo, da Pensilvânia. Claro está, isso, para além de criar uma gigantesca crise política e institucional desembocará, fatalmente, no SCOTUS.


Abre-se, de seguida, a possibilidade de serem apresentadas objecções aos votos contados. Sublinhe-se que esta possibilidade é aberta Estado a Estado, cujos votos são abertos e considerados por ordem alfabética. Ou seja, por exemplo, se ocorrer uma objecção aos votos do Estado do Alabama, a contagem não prossegue para o Estado seguinte enquanto não for decidida por cada uma das Câmaras (parte final do § 15). O Senado retira-se para a sua sala para decidir e, por sua vez, a Presidente (“Speaker”) da casa dos Representantes (que já foi eleita no dia 3 de Janeiro desse ano e será, em princípio, do Partido Democrata e, muito provavelmente, será de novo Nancy Pelosi) submeterá a objecção à Casa dos Representantes, para decisão. Estas objecções surgirão, naturalmente, do lado Republicano e relacionar-se-ão, essencialmente, com a legalidade da certificação, apreciando a mesma em função das leis de cada  Estado. É por essa razão que as objecções, assinadas por, pelo menos, um Senador e um Representante, têm que ser escritas, expondo de forma clara e concisa as razões da objecção, não sendo permitido o uso da palavra para fazer discursos ou apresentar argumentos orais.


Aqui entra, verdadeiramente, o factor político.


Como é sabido o líder Republicano do Senado - Mitch McConnell - já reconheceu publicamente o candidato Biden como “Presidente-eleito”. Até ao momento em que este texto é escrito (27/12/2020) não há conhecimento de qualquer declaração oficial por banda de algum Senador Republicano, no sentido de acompanhar uma objecção por banda de algum Representante Republicano (que são vários). O Senador recém eleito Tommy Tuberville apenas disse que não rejeitava a possibilidade de acompanhar a objecção de algum dos Representantes Republicanos. Também, publicamente, se mostraram ainda indecisos Kelly Loeffler, da Geórgia, e Rand Paul, do Kentucky. Ao invés, há Senadores Republicanos - Mitt Romney, Susan Collins, Lisa Murkowski, e Ben Sasse (https://www.axios.com/republicans-who-said-joe-biden-is-president-elect-f519efbb-939d-4abb-91b8-567745d520d5.html) - que já reconheceram Biden como “Presidente-eleito”.


Já na Casa dos Representantes, no que toca aos Representantes Republicanos, várias dezenas dos mesmos vieram a campo afirmar expressamente que iriam apresentar objecções e nenhum aceitou Biden como "Presidente-eleito". Têm, no entanto, que encontrar, pelo menos, um Senador Republicano que assine, também, cada uma dessas objecções.


Temos, deste modo, pelo menos cinco Senadores Republicanos que, em princípio, não votarão a favor das objecções que venham a ser apresentadas por banda de um Senador e um Representante Republicano, o que significa, considerando que há uma diferença de apenas 3 Senadores a favor dos Republicanos, que mesmo que todos os restantes 46 Senadores Republicanos votassem a favor das objecções relativas a votos favoráveis a Biden, as mesmas não passariam. Por maioria de razão o mesmo sucederá na Casa dos Representantes.


Não surgindo “certificados concorrentes” a situação é de fácil resolução. As duas Câmaras votam as objecções e, em princípio, considerando o factor político explanado no anterior parágrafo, o “bilhete” Biden/Harris é confirmado.


O mesmo sucederá se, ainda que existam “certificados concorrentes”, Mitch e os outros quatro senadores republicanos mantiverem a posição de reconhecimento que publicamente expressaram.


Mas, ainda assim, poderá suceder que, apesar da concordância das duas Câmaras, Mike Pence se veja tentado a exercer a prerrogativa constitucional acima referida (e que divide os constitucionalistas) invocando o Electoral Count Act de 1887, que se sobrepõe às leis Estaduais, declarando o eleitores que tenham eventualmente (não tenho conhecimento oficial de que tal tenha ocorrido, até esta data) indicados pelos corpos legislativos da Pensilvânia como os revestidos de legitimidade democrática para efeitos de contagem dos votos do Colégio Eleitoral. Esta eventual actuação do Presidente do Congresso dependerá, a meu ver, essencialmente, de duas coisas:


a) Da intensidade da pressão popular republicana no sentido de não reconhecer os resultados do Colégio Eleitoral tal qual os mesmos foram divulgados;


b) Da real (de bastidores) posição de Mitch McConnell, isto é, sabendo o Presidente do Congresso que tem a cobertura e real apoio daquele e de outros líderes Republicanos, mesmo que sem a cobertura institucional do Senado, sentir-se-á mais confortável a tomar esta opção.


Se existirem “certificados concorrentes” e as duas Câmaras votarem divergentemente (Senado pelos Grandes Eleitores por Trump e a Casa dos Representantes mantendo a deliberação oficial do Colégio Eleitorial) então a situação pode complicar-se, e muito.


O exotérico § 15 é de difícil interpretação e tem dado origem a duas correntes de interpretação.


Por um lado, o Partido Democrata e a candidatura Biden/Harris sustentará que tem aplicação apenas esta parte do § 15: «[b]But if the two Houses shall disagree in respect of the counting of such votes, then, and in that case, the votes of the electors whose appointment shall have been certified by the executive of the State, under the seal thereof, shall be counted». Ou seja, irão defender que o que releva é a certificação feita pelo Governador e não a feita pelos corpos legislativos Estaduais. Em seu apoio, certamente, irão invocar um trabalho clássico, da autoria de Stephen A. Siegel (“The Conscientious Congressman’s Guide to the Electoral Count Act of 1887, 56 FLA. L. REV. 541 (2004) – disponível aqui http://www.floridalawreview.com/wp-content/uploads/2010/01/Siegel-BOOK.pdf).


Mas, por outro lado, é possível contra-argumentar, como fará o Partido Republicano, que a correcta interpretação do § 15, aplicada à situação de dois “certificados concorrentes” implica a rejeição de ambos. Ou seja, os votos do Colégio Eleitoral, no que diz respeito, por exemplo, à Pennsylvania deixariam de contar. Este contra-argumento parte do princípio de que a certificação por parte do Governador não pode funcionar como elemento de desempate quando são submetidos dois certificados de votos que possam invocar o estatuto de “porto seguro” regulado no § 5 (3 U.S. Code § 5 - Determination of controversy as to appointment of electors). Esta questão (do “porto seguro”) foi a que determinou que, nas eleições presidenciais de 2000, todos os votos da Flórida fossem contados (no Congresso então reunido) a favor de Bush porque, entretanto, o SCOTUS havia decidido que fosse parada a recontagem dos votos e, por isso, estava decidida a questão. Por essa razão é essencial, para os interesses do Partido Republicano e da Candidatura Trump/Pence, que as “certificações concorrentes” tenham sido obtidas, emitidas ou declaradas até ao sexto dia anterior ao da reunião do Colégio Eleitoral, isto é, até seis dias antes de 14 de Dezembro de 2021 (no sentido que será defendido pelos Republicanos ver: “Agency Prohibiting a Federal Officer from Providing Accurate Cost Information to the United States Congress (Apr. 26, 2004)” - https://fas.org/sgp/crs/crs042604.pdf - e Wroth, Kinvin L. (1968). "Election Contests and the Electoral Vote"https://books.google.pt/books?id=ORgQGii_FBgC&pg=PA774&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false). Um dos elementos essenciais, no entanto, para suportar este argumento é o de que a intervenção legislativa Estadual, indicando expressamente um diverso grupo de Grandes Eleitores, seja feita no quadro de uma emergência análoga a um ciberataque (por isso a insistência da candidatura Trump na questão do software e do hardware utilizados no voto electrónico), enquanto forma de evitar desapossar o Estado do seu direito em participar nas eleições presidenciais e de obstar ao que seria – nesta perspectiva – um “roubo” da vontade popular do Estado.


Natural e previsivelmente o Partido Democrata tentará parar o procedimento (utilizando o pretexto da última frase do § 15) e procurará passar de imediato para a XX Emenda, secção 4 (20th Amendment | US Constitution | US Law | LII / Legal Information Institute), conjugada com o 3 U.S. Code § 19, secção (a) (1) (3 U.S. Code § 19 - Vacancy in offices of both President and Vice President; officers eligible to act), passando a previsível “speaker” da Casa dos Representantes, Nancy Pelosi, a exercer, temporariamente, o cargo de Presidente. Por sua vez o Partido Republicano contra-argumentará que os trabalhos não podem parar, em função do que vai disposto no 3 U.S. Code § 16, segunda parte (3 U.S. Code § 16 - Same; seats for officers and Members of two Houses in joint meeting), do qual resulta uma clara intenção legislativa de que esta sessão do Congresso não termine, nem seja adiada ou suspensa (mais do que cinco dias), sem que estejam contados os votos. Com este fundamento, o Presidente do Congresso, mesmo que todos os Senadores e Representantes do Partido Democrata abandonem a sessão conjunta, prosseguirá na mesma com os Republicanos presentes e terminará o procedimento de contagem do Congresso, certamente culminando com a atribuição da vitória à candidatura Trump/Pence.


No entretanto, se tudo correr nestes termos, é possível que Nancy Pelosi (ou outro Democrata que for “speaker” da Casa dos Representantes), determine a saída do respectivo espaço por parte dos Senadores e passará uma resolução na Casa dos Representantes no sentido de considerar suspensos os trabalhos do Congresso, enquanto Pence não rever a sua posição, retirando a Casa dos Representantes dos trabalhos (§ 18, parte final – neste sentido Land, Chris and Schultz, David, ,August 22, 2016, Rutgers Journal of Law & Public Policy, Volume 13, Issue 3 (2016) em ,On the Unenforceability of the Electoral Count Act by Chris Land, David Schultz).


Pence não o fará e reunirá o que resta do Congresso (Senadores e Representantes) na sala do Senado, prosseguindo e terminando o procedimento conforme o já referido supra, apresentando-se apenas um Senador Democrata encarregue de fazer constar da acta dos trabalhos o protesto pela continuação dos mesmos, invocando argumentos formais como, por exemplo, não estarem presentes os dois “contadores” (“tellers”) que haviam sido nomeados pela Casa dos Representantes, mas apenas os indicados pelo Senado.


Assim, por um lado, poderemos observar o Congresso, reduzido aos Senadores e Representantes Republicanos, a certificar a eleição dos incumbentes Trump/Pence, ao abrigo do do 3 U.S. Code § 15  e, por outro lado, a Casa dos Representantes a indicar o respectivo(a) “speaker” como presidente, ao abrigo do 3 U.S. Code § 19, ambos prontos para prestar juramento ao meio-dia de 21 de Janeiro de 2021. Nenhum se reconhecendo ao outro.


Neste quadro, assim desenhado, algumas perguntas começam a formular-se, com o aproximar do dia 21 de Janeiro de 2021: O que fará o Exército? Quem será reconhecido como “commander-in-chief”? Quem receberá a pastinha com os códigos de lançamento nucleares?   Como sair disto? E é possível sair desta situação extrema com paz e civilidade?


Bom, inevitavelmente, chegará o momento do SCOTUS, que tanto tem fugido à questão, intervir. Não o pode fazer, obviamente, de motu próprio. Alguém terá que intentar uma acção apresentada directamente ao SCOTUS ou começando por um Tribunal Federal. Mas coloca-se a questão de saber se o SCOTUS terá, ele mesmo, legitimidade para intervir. Relembre-se o voto de vencido do Justice Breyer, aquando da decisão em Bush v. Gore, 531 U.S. 98 (2000), já acima referenciada: «The decision by both the Constitution’s Framers and the 1886 Congress to minimize this Court’s role in resolving close federal Presidential elections is as wise as it is clear. However awkward or difficult it may be for Congress to resolve difficult electoral disputes, Congress, being a political body, expresses the people’s will far more accurately than does an unelected Court».


Se esta for a posição do actual SCOTUS, então nem por aí se resolve a situação e podemos ser testemunhas de algo impensável há 12 meses.


Espero que não, sendo certo que, se alguém existe para culpar pela absurda confusão jurídica gerada por uma situação política menos normal, e pelas eventuais consequências da inexistência de uma cabal definição jurisdicional, esse alguém são os próprios legisladores. Como referi de início, e assim termino, a natureza bizantina e gongórica da legislação eleitoral norte-americana faz-me desejar que os titulares dos cérebros que a produziram fossem pendurados pelos testículos por toda a eternidade (e, nota bene, eternamente vivos).


Comentários

  1. Independentemente de esta eleição ter sido "limpa" ou não, se se "normalizar" a ideia que cabe ao vice-presidente decidir isso, acho que em breve será quase o fim da possibilidade de alternância democrática nos EUA - afinal, o resultado disso acabará por ser tornar quase impossivel a oposiçao ganhar eleições (já que o VP cessante poderá sempre dizer "as dos estado X, Y e Z não contam").

    E nem é preciso que o partido no poder seja composto por malvados desejosos de manter o poder a qualquer custo - basta pensarem isso do partido da oposição ("já que o partido da oposição provavelmente vai aproveitar o controle da vice-presidência para se eternzarem no poder, não podemos ser anjinhos e deixa-los ganhar")

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    1. É precisamente esse o contra-argumento que refiro no texto: «...não sendo razoável deixar nas mãos de uma única pessoa o poder exclusivo de resolver disputas sobre os votos eleitorais de cada Estado, precisamente porque violaria o princípio Federalista (para uma análise mais profunda da questão pode recorrer-se ao livro de Edward B. Foley, “Ballot Battles: The History of Disputed Elections”, Oxford University Press, 2016, em especial, quanto às várias interpretações, argumentos e contra-argumentos da XII Emenda, págs. 125 a 132). Sendo razoável considerar que a maioria dos constitucionalistas americanos se inclinam mais para esta segunda interpretação trata-se, claramente, de matéria que, a surgir a questão, terá, penso, que ser dirimida pelo SCOTUS.».

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