Como Eliminar a Realidade? 3 Dicas Práticas Para o Seu Dia a Dia



Como somos seres limitados e imperfeitos que têm que agir num mundo altamente complexo e rico em realidade, temos que dar uma certa coerência a essa realidade de modo a agirmos de uma forma minimamente lógica. Há pelo menos duas formas de tornar a realidade coerente – integrar os elementos dessa realidade num sistema compreensivo; ou eliminar da nossa mente partes dessa realidade de modo a torná-la mais fácil de compreender.

O primeiro método, da compreensão da realidade num sistema único a que se chamaria de “sistema-mundo” é uma tarefa hercúlea e por isso muito pouco praticado. Poucos são o que se aventuram nesta viagem, que exige tempo e temperamento. O método de eliminar a realidade é por isso o escolhido pela maior parte das pessoas. Podemos chamar este método de “eliminismo”. Não deve ser confundido com o “iluminismo”, mas curiosamente “iluminismo” e “eliminismo” foram historicamente dois conceitos aparentados. Mas voltarei a isso no fim.

Gostava apenas de notar que se podem distinguir três grandes vertentes do eliminismo, conforme o vejamos do ponto de vista da ação da pessoa em si, individualmente; do ponto de vista social; ou do ponto de vista metafísico.

O eliminismo na ação humana
Na ação humana o eliminismo é também chamado de pragmatismo e costuma ser considerado uma coisa boa, talvez não totalmente boa, mas no balanço, boa. A pessoa pragmática não quer carregar o peso do mundo às costas – no fundo, reconhece que é apenas uma parte muito minúscula desse mundo e que não o pode controlar – por isso escolhe focar-se apenas no que pode controlar e ignora o resto. Não há nada de errado nisto, em princípio, mas só em princípio. Repare-se que este pragmatismo pode ser também sintomático de um profundo egoísmo e desinteresse pelas pessoas e pela vida à nossa volta. Assim de repente vem-me à ideia aqueles milhões de alemães que, a meio do século 20, provavelmente decidiram eliminar do seu plano mental que os seus antigos vizinhos judeus estavam a ser expropriados, escorraçados e queimados em fornalhas. Era mais prático eliminar esta realidade do que ter que lidar com ela. Era mais fácil. Este é apenas um exemplo extremo, mas de onde se infere facilmente que o pragmatismo tem alguma coisa que se lhe diga num mundo humano eminentemente social, em que as nossas vidas estão tão ligadas e interdependentes.

O eliminismo na visão social
No ponto de vista social, o eliminismo é muito conspícuo nas várias vertentes do socialismo, com especial destaque no comunismo e extrema-esquerda em geral. Este socialismo simplesmente elimina do seu pensamento a existência de um ecossistema social a que chamamos de sistema económico. Como tal ignora também a ciência económica - que é a disciplina que estuda este sistema. O socialismo não vê leis naturais, irrevogáveis, na economia (que, para ele é apenas um conjunto mais ou menos desordenado de “patrões” e “trabalhadores” em que os patrões fazem o que lhes apetece e os trabalhadores “têm que se subjugar à opressão da burguesia” para não morrerem à fome). Não há aqui pensamento algum, há apenas um vislumbre, mas muito distorcido, de categorias primárias da ação humana, que mais parecem categorias da vida animal propriamente dita do que de uma sociedade habitada por pessoas racionais. Termos como “alienação”, “exploração”, “opressão”, “luta de classes” (as “classes” eram categorias da monarquia ou aristocracia  - o que é que isto tem a ver com a economia?) vão saltando de uma forma mais ou menos casual para formar aquilo que é um conjunto de slogans, frases que apelam às emoções imediatas e básicas, mas sem qualquer sistema coerente por trás. Como já notado por Pessoa «O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema — o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução […]; inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós. O comunismo não é uma doutrina porque é uma anti-doutrina, ou uma contra-doutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental — isto é de civilização e de cultura —, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.»

O eliminismo na visão existencial do mundo
Finalmente, do ponto de vista metafísico, o eliminismo é representado por aquilo a que se chama, em filosofia, de “materialismo” – a eliminação de toda a realidade que não seja estritamente material. Isto é, para o materialista tudo o que existe no mundo é matéria ou pode ser reduzido à matéria. Mas, ao contrário do socialismo ou comunismo, os materialistas mais ambiciosos pretendem e têm construído um sistema. As ciências naturais (física, química e biologia) descrevem esse sistema material que pretende representar o mundo. Mas como é um sistema que nasceu do eliminismo, vai criar inevitavelmente em si contradições irresolúveis, quando lhe são colocadas certas questões. Aliás, é uma característica necessária de todos os modelos eliministas que carreguem em si contradições insanáveis, já que a eliminação de certas realidades do seu sistema torna a coerência do sistema original em algo de incoerente.

Assim, o materialista vê-se na posição embaraçosa de ter que explicar como é que a consciência e o pensamento emergiram da matéria. A resposta do materialista é que existe um fenómeno que se chama de “emergência” - e esse fenómeno é a resposta à questão sobre a emergência de vida, consciência e pensamento a partir da matéria. Portanto, segundo o materialista, a resposta para o facto de haver emergência é que existe emergência. Confuso? Não é preciso, já que isto é simplesmente incoerência ou falta de resposta. Claro que os materialistas têm um certo arsenal de respostas mais concretas, como é o caso do “incrementalismo” de Richard Dawkins. Para Dawkins, a emergência dessa realidade complexa (a que chamamos sucessivamente de vida, consciência e pensamento) a partir dos átomos que constituem a matéria, pode ser concebida se visualizarmos os corpos materiais a evoluírem na história em pequenos incrementos – hoje um bocadinho, daqui a 1000 anos outro, daqui a 10.000 anos mais, etc… até que o que no início era um rochedo acaba por se transformar num ser humano que escreve livros a dizer que ele não é mais do que o desenvolvimento incremental de um rochedo (e, daí…). Portanto, fazendo uma analogia que já usei num artigo anterior, para Dawkins, é certo, uma galinha não consegue escrever os Lusíadas se colocada perante um teclado onde dá bicadas ao calhas. Aqui estamos de acordo. Mas, já não é tão certo que não consiga escrever uma frase ou um verso. Depois até pode morrer, mas os seus descendentes pintainhos, a partir daquele verso da mãe-galinha, lá vão conseguir escrever uma quadra. E umas centenas de anos depois escrevem um soneto. Daqui até escreverem os Lusíadas é uma questão de tempo, segundo o Incrementalismo. Mas é claro que isto é impossível a menos que as galinhas já tenham esse potencial. E não têm.

O que eu não consigo responder é como é que átomos que apenas “agem”, grosso modo, de acordo com as categorias de atração e repulsa (atraem-se ou repelem-se, é o que fazem, basicamente) podem dar origem, isto é, podem juntar-se de uma tal forma (como num puzzle) que daí resulte um corpo (um agregado de átomos) que comece a usar categorias de ação e pensamento como, por exemplo, elusivo, conclusão, humor, definição, incompetente, inspiração, insinuação, biscate, interessante, badalhoco, contrafação, ambição, coragem, inocente, razoável, estoico, amador, indireto, atenção, hesitante, cobaia, inocente, transcendente, julgar, etc, etc… Isto é, como é que os átomos, que mais não “sabem” do que juntar-se ou separar-se, quando se juntam muitos começam a pensar e a ter categorias de pensamento e ação dadas por centenas de palavras-conceito que não são de todo reduzíveis à mera categoria de atração-repulsa? Isto é, estes conceitos, embora alguns deles possam incluir algum resquício da categoria de atração-repulsa, incluem muito mais categorias. E isto não pode “emergir” dos átomos, pois eles não têm esses conceitos – a “emergência” dos materialistas não me parece ser mais do que a violação do princípio de que tudo deve ter uma causa ou razão suficiente ou, equivalentemente, da máxima “Ex nihilo nihil fit” - do nada só vem o nada.

O facto de materialismo e marxismo serem aparentados não é coincidência, portanto. São duas vertentes notáveis do eliminismo e ambos gerados pela época do iluminismo– que trouxe coisas boas (a crítica e o ceticismo saudável) mas também más – o que existe é apenas o que é percebido pelos 5 sentidos.

Que uma coisa não existe pois não se consegue cheirar, ver, tocar, tatear ou ouvir é para mim uma proposição extraordinária. Repare-se que nenhum dos conceitos que dei no parágrafo acima pode ser cheirado, visto, tocado, tateado ou ouvido. Contudo, estes conceitos são claramente parte do mundo real. De igual modo, existe todo um mundo intelectual e sentiente, todo um mundo de lógica, de beleza, de amor, de verdade, enfim, que não é apreendido pelos 5 sentidos (pois estes só captam a matéria) mas apreendido pela mente. E esta mente, se quisermos, parece ser o óbvio sexto sentido que os materialistas se recusam a reconhecer. Mente essa que é não apenas coextensiva com a realidade material (já era bom se reconhecessem pelo menos isto) mas é inclusivamente a origem da própria matéria – convenhamos, nunca ninguém viu matéria, ninguém sabe o que é a matéria; o que existem são coisas materiais, e uma coisa é material quando é apreendida pelos 5 sentidos. Mas a origem das coisas materiais será uma mente (como demonstrado na prova cosmológica), e as coisas materiais são apenas a expressão “pública” dessa mente. As coisas materiais estão para as coisas mentais como um jardim público (onde todos podem entrar) está para um jardim privado (com muros altos que não deixam ver para dentro quem está de fora… e, contudo, indubitavelmente existe um jardim lá dentro).

Os materialistas recusam reconhecer a mente como realidade autónoma por várias razões, mas principalmente, parece-me, por fazer parte de uma agenda histórica para eliminar o conceito de Deus. Esta eliminação do conceito de Deus prende-se também menos com o conceito em si mas com as guerrinhas e questiúnculas religiosas, onde se metem também os criacionistas ao barulho, gerando uma enorme confusão e falta de “ideias clara e distintas”, onde, ao contrário da canção do António Variações, quando o corpo não tem juízo a mente é que paga.

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