A Marcha de Alfama


Mamadou Ba da associação SOS Racismo, responsabilizava-se assim à RTP, no final da manifestação anti-racista de Sábado:

«Teremos sempre uma responsabilidade moral mas nós não somos responsáveis por aquilo que aconteça às pessoas em si, directamente, porque deixámos claramente indicações para que as pessoas sigam essas indicações», ou melhor, «a responsabilidade é nossa, evidentemente, do ponto de vista moral, porque nós queremos assumir responsabilidade política de convocar a manifestação, queremos também que as pessoas assumam a responsabilidade política e cívica de cumprirem com as normas de distanciamento social».

Tentando traduzir, responsabiliza-se moralmente pelo prestigiante «combate para a saúde da nossa democracia»; a SOS racismo fica a sós com o auto-elogio em forma de mea culpa - mas distancia-se socialmente da infecta responsabilidade real, largada tanto aos participantes infectantes como aos participantes infectados. Nada de novo; esta é aliás a génese da famosa vontade geral: o bem do todo colectivo, aqui convenientemente encarnado na associação e no seu comissário, justifica o sacrifício dos indivíduos.

Que afinal a culpa será, em tão usada e estafada como consoladora fórmula, invenção judaico-cristã, a esquerda não pode abdicar de continuamente ostentar a sua rebeldia inconformada imediatamente em competição imitativa com outras esquerdas que aparentem seguir em maior rebeldia inconformada.

Ainda eu reflectia na maturação política da coordenadora do BE que, prudentemente, sem se comprometer, participou e não participou na manifestação aplaudindo-a da varanda da sede do BE, quando, ouvindo de novo estas divertidas declarações de Mamadou, reparo que o profissional activista avança ainda, em SOS evasismo, outra culposa identidade além dos participantes na manifestação por si organizada.

Se, na manifestação, não houve o higiénico distanciamento COVID, isso deveu-se a que «tendo em conta a circunstância física da avenida, tornou-se muito mais difícil garantir o distanciamento social».

Tal peculiar detalhe arquitectónico das avenidas de Lisboa, lembrou-me outro culposo detalhe arquitectónico dos edifícios belgas. Porque é que aquando da invasão alemã da Bélgica, na Grande Guerra, os belgas foram retratados pelos alemães, desde os jornais às correspondências epistolares privadas dos soldados, como bestas sanguinárias, ralé de franco-atiradores capazes das piores atrocidades? Porque as paredes de numerosos edifícios belgas continham pequenas aberturas tapadas com placas de metal amovíveis. Pouco importou que tais aberturas, assim tão suspeitosamente encobertas como prontas a descobrir-se, servissem para, em caso de eventuais obras, facilitar a fixação de andaimes, nem importou que as baixas causadas por franco-atiradores tivessem sido mínimas. Para a multidão cansada e assustada de soldados alemães, tais mal ocultas aberturas provavam o carácter homicida, franco-atirador, do belga; e serviram para, em enlouquecida fúria colectiva, justificar o seu generoso incendiar e fuzilar em terras belgas. Um académico alemão de Köninsberg escreveu até a provar como tal vocação franco-atiradeira se deixava já perceber pela pintura flamenga.

Imagine-se que conclusões se poderiam tirar desde o refrão deste fado castiço:

Becos, escadinhas, ruas estreitinhas
Onde em cada esquina há um bailarico
Trovas p'las vielas e em todas elas
Perfume de manjerico
Risos, gargalhadas, fados, desgarradas,
Hoje em Alfama é um demónio
E em cada canto um suave encanto
De um trono de Santo António.

Não creio evidentemente que a justificação urbano-paisagista de Mamadou, «as circunstâncias físicas da avenida» (provavelmente quereria dizer circunstâncias estreitinhas), pudesse levar a tal, até pelo contexto em que a proferiu, já no fim da manifestação a dispersar. Creio até que imediatamente se terá arrependido do que disse, a tentar um desculpabilizar nervoso e pronto, na entrevista que dava em directo. Mas são precisamente este género de percepções e justificações que, vindas do arquitecto supremo da manifestação, por muito tontas que sejam, podem sobreexcitar uma multidão.

Qualquer ajuntamento indignado de uma multidão, qualquer manifestação, é já de si uma excepção da ordem pública, leva já de si o veio imitativo e, para certos sectores políticos, prestigiante, de uma revolução e daquela sua criadora violência divina que entusiasmava Walter Benjamin. A sua interiorização, assimilação, na lei, permite a regime nascido de revolução ostentar sua tolerância, sem contradizer sua fundamentação e mitificação popular, dita democrática. Permite principalmente, controlar, domesticar tal perigosa excepção: não se faz manifestação sem a manifestação se delimitar a tempo (hora de inicio e termo), espaço (circuito) e modo (é possível insultar e berrar desde o fundo dos brônquios assim como cortar o trânsito, não é admissível, agredir fisicamente, partir, roubar, incendiar) a manifestação. Permite, numa controlada simulação de excesso e violência, numa ostensiva e ameaçadora demonstração de força irritada (basta atentar nos gestos e palavras numa manifestação), um orientado vazar de violência e um aliviar de tensões que evita outras e mais descontroladas violências. Independentemente dos objectivos da manifestação, frequentemente objectivados num nada, é ver a exaustão feliz do fim da festa, a calmaria esperançosa com que começa a dispersão.

A indignação da nossa “manifestação anti-racismo” foi menos emotiva e espontânea que voluntariosa (no intuito de imitar outras manifestações mais genuínas, marcar presença, dar prova de existência) e contida em ambiente desconfinante. Mas e se de repente um desconhecido oferecesse umas flores e não uns cravos? E se um ignorante boato posto a correr durante a manifestação desse o seu circuito, confinado a avenidas pejadas de ocultas e suspeitas «circunstâncias físicas», como maquiavélica imposição da polícia ou do governo a condenar assim a morte certa por COVID os manifestantes? Nem tal teria bastado para incendiar a multidão e pô-la a incendiar.

Mas, e os exemplos não têm faltado actualmente sobretudo em manifestações não domesticadas, espontâneas e portanto ilegais, é destas simples e apressadas ideias que se atiça à loucura as multidões. Estando a multidão já genuinamente excitada de indignação, basta um catalisador agressivo ou tomado como agressivo; bastam umas palavras, simples palavra ou gesto dum polícia, dum líder da manifestação, ou mesmo de qualquer elemento da multidão manifestante. Aí, a multidão de mais indignação se sobreexcita e se contagia como fogo engolindo em si mais indivíduos, podendo levar a uma efectiva e punitiva fúria incendiária. Estar no meio duma multidão neste estado, a imitar as palavras, os gritos, os actos que à volta se observam, é partilhar com todos os outros na multidão um inebriante sentimento de omnipotência e imunidade.

Agora, podem os actos mais invulgares ser cometidos pelas pessoas mais improváveis. Agora, todo eu me transformo com todos à minha volta a formar um imenso e furioso corpo animal; agora, todo eu, neste estado de inconsciência animal, luto e assim trabalho, como o escravo de Hegel em versão de Kojève, para minha auto-consciencialização em forma de reconhecimento; agora todo eu, nesta acção transformadora, sou homem novo; o mundo à minha volta transforma-se, com este meu labor activista; posso libertar-me, mesmo que não saiba bem do quê; posso vingar-me, sabendo muito bem do quê, embora em objecto delegado; posso enfurecer-me, destruir, incendiar, agredir mesmo que, passada a adrenalina que me percorre, não me lembre sequer do que fiz, porque o fiz, renegue até o que fiz.

As reaccionárias e largas avenidas da Paris de Napoleão III, projectadas por Haussmann o urbanista anti-barricada, não evitaram mais revoluções. Que as reaccionárias e estreitas avenidas da Lisboa de Manuel Salgado, projecção urbanista do anti-racista Mamadou, não evitando mais revoluções, ao menos lhe confinem este tipo de desresponsabilização. Nada de grave; afinal, é o Santo António possível.

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