Hagia Sophia: A reflexão de um agnóstico.


A Turquia foi um dos países mais surpreendentes que já visitei. Recordo com saudades a beleza da Capadócia ou de Pamukkale, a carga histórica de Efeso, as magnificas praias da Riviera Turca, a multicultural e diversa Istambul, a “europeia” e muito liberal Esmirna, a ultra-religiosa Konya. Um país com um passado riquíssimo, milenar, um passado que está enraizado na cultura turca e que construiu uma paisagem de palácios, igrejas e mesquitas, marcas deixadas pelos impérios Bizantino e Otomano, que influenciaram a cultura, costumes e a religião do país. 

De Istambul recordo a beleza da basílica do divino conhecimento, Hagia Sophia, (erradamente tratada por Santa Sofia). Esta basílica foi por mil anos, a maior e mais importante casa de culto cristão do mundo até ser convertida numa mesquita no século XV. O edifício, até dia 2 de Julho de 2020, era um museu e ainda está cheio de mosaicos e frescos cristãos de valor inestimável. Foi construída em 537, pelo imperador bizantino Justiniano mas, em 1453, o sultão otomano Mehmed II capturou Istambul (anteriormente conhecida como Constantinopla)  e os otomanos converteram o edifício numa mesquita, acrescentando quatro minaretes ao exterior e cobrindo ícones cristãos e mosaicos de ouro com painéis de caligrafia religiosa árabe. 

Ataturk, o primeiro presidente da Turquia, secularizou a obra arquitectónica em 1935 e reabriu-a como um museu. Ataturk sabia, apesar do seu esforço de modernização, o quanto a basílica era importante para os cristãos ortodoxos. Ataturk também sabia que os crentes têm memória longa e que Hagia Sophia continuava a ser uma fonte de discórdia entre cristãos e muçulmanos que dividia a Turquia.

Erdogan decidiu reverter a decisão de Ataturk e torná-la numa mesquita. No passado dia 2 de julho de 2020 o tribunal superior turco decidiu anular o decreto de 1934, que a tinha transformado de uma mesquita num museu, por “erros processuais”. Para Erdogan, este é mais um passo, um grande passo, no sentido de reforçar seu nacionalismo religioso. Este é o momento de Erdogan agir. A sua popularidade e do seu partido está no nível mais baixo em dois anos por causa de uma economia em declínio, bem como por níveis assustadores de autoritarismo e corrupção. Para além disto, enfrenta novos desafios de dois novos partidos que podem apelar a sua base conservadora: o partido do futuro, liderado pelo ex-primeiro ministro Ahmet Davutoglu, e o partido da democracia e progresso, liderado pelo ex-ministro da economia Ali Babacan. Estes dois partidos estão em crescendo e vão capturar os eleitores religiosos muçulmanos, Erdogan tem de se posicionar como o verdadeiro salvador dos muçulmanos turcos ao mesmo tempo que aproveita para provocar a Grécia.

O secularismo de inspiração francesa de Ataturk teve problemas graves, desvios inaceitáveis. Ataturk proibiu práticas e roupas islâmicas, perseguiu clérigos e é visto por muitos turcos religiosos muçulmanos como alguém que atacou seriamente a sua fé. Por isso reabrir Hagia Sophia para uma vertente de exclusiva adoração muçulmana tem sido um desejo dos conservadores religiosos da Turquia. Erdogan deu finalmente esse passo histórico para mostrar que ele está a tornar a Turquia muçulmana outra vez.

Há para mim um caminho melhor. Em vez deste nacionalismo religioso de cunho revanchista, proponho uma solução baseada no pluralismo e na tolerância religiosa. Hagia Sophia poderia ser aberta para os cultos muçulmanos e cristãos. O edifício é grande o suficiente para consagrar áreas separadas de recolhimento e culto. Uma programação cuidadosa poderia permitir que os serviços ocorressem em momentos diferentes, permitindo a todos, inclusive a agnósticos como eu, continuar a visitar e a desfrutar da beleza e da história de uma das mais belas criações arquitectónicas e artisticas que já conheci. 

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