SALTO MORTALE

Photo by Jascha Huisman on Unsplash

Em 1950, Isaiah Berlin, num dos seus magníficos ensaios sobre as ideias políticas em conflito no século XX, escrevia que: 
“No doubt all abandonment of old values for new may appear to the surviving adherents of the former as conscienceless disregard for morality as such. If so, it is a great delusion. There is all too little disbelief, whether conscienceless or apathetic, in the new values. On the contrary, they are clung to unreasoning faith and that blind intolerance towards scepticism which springs, as often as not, from an inner bankruptcy or terror, the hope against hope that here at least is a safe haven, narrow, dark, cut off, but secure. Growing numbers of human beings are prepared to purchase this sense of security even at the cost of allowing vast tracts of life to be controlled by persons who, whether consciously or not, act systematically to narrow the horizon of human activity to manageable proportions, to train human beings into more easily combined parts - interchangeable, almost prefabricated - of a total pattern. In the face of such a strong desire to stabilise, if need be, at the lowest level - upon the floor from which you cannot fall, which cannot betray you, let you down - all the ancient political principles begin to vanish, feeble symbols of creeds no longer relevant to new realities”.
Isaiah Berlin, Political Ideas in the 20th Century (1950), in: Liberty, ed. Henry Hardy, Oxford University Press, 2008, p.83

Ou seja, a questão da degeneração dos valores morais Ocidentais, — uma evidência para Berlin em 1950 e quiçá agora também para alguns de nós no Século XXI —, de acordo com este pequeno excerto, mais que o arauto de uma nova razão, muito pelo contrário, deriva precisamente da decadência desta e do triunfo de uma espécie de fé irracional numa quimera que, mesmo que "estreita, escura e separada", garanta um chão de segurança do qual não se caia. Mais, acrescenta Berlin, essa crença irracional brota de um medo interior, "de uma falência, de um terror", que obriga a agarrar aquela ilusão securitária como que se de uma tábua de salvação se tratasse.

Há aqui, parece-me, duas notas muito importantes que, ainda para mais, com a presciência que um escrito com 70 anos pode oferecer sobre, pegando na ideia Dostoiévski, "as grandes vagas de fundo que compõem o movimento da História universal da Humanidade", podem lançar importantes luzes sobre o momento particular que vivemos. 

A primeira, e desde logo a mais impactante, é a noção que o actual discurso político, supostamente verdadeiro, prático, verificável e demonstrável, logo racional e científico, não deriva tanto de um apogeu da razão, pelo menos um de facto, mas, pelo contrário, da falência desta. Ou seja, à apologia discursiva da razão corresponde a anteriori o colapso da própria razão. Por outros termos, não é racional crer-se que esse espaço de absoluta segurança existencial que Berlin refere, por mais pequeno que se imagine, seja real. Muito pelo contrário, a crença em tamanha ilusão, pelo menos no que à experiência humana diz respeito, é uma impossibilidade. Ora, a crença na impossibilidade será, por definição, irracional. Assim, e em três frases, Berlin resume algo muito concreto sobre os tempos que vivemos: por detrás do discurso racionalista, a coberto da imagem científica, do invólucro lógico, aquilo que de facto sustenta esta visão do mundo não passa de uma impossibilidade irracional para quem compreenda a vida tal como ela é. O racionalismo — a crença que a razão descobrirá a solução certa, definitiva, infalível para o dilema humano — será, portanto, irracional.

Depois, o motivo. Como explicar a adopção da impossibilidade irracional a coberto de uma justificação que se diz ela própria racional? De acordo com Berlin, a resposta será o medo. O terror existencial, um vazio que se sente e que se não aguenta, forçando, mesmo que inconscientemente, à crença numa solução para tal situação. Essa solução, a busca de uma segurança existencial, passa por aceitar uma hipótese que, mesmo impossível, acalme o temor existencial. Do medo do vazio à crença na resposta científica a esse vazio, e daqui à noção que a ciência nos trará a segurança existencial, o único tónico para o medo da condição humana, aqui temos a explicação para o apogeu do ideal, já não de liberdade, de expressão, de criação, mas de segurança, logo de controle, de limitação, de conformidade. Da apologia da liberdade para a negação desta em nome da segurança, portanto.

Não pode ser livre aquele tolhido pelo medo. Num mundo onde as respostas a esse medo desapareceram quase sem rasto para a narrativa comum – leia-se a ordem moral religiosa – sobra agora o vazio para os homens que aceitem essa narrativa. Sem explicação para a condição humana, sem sentido, significado ou telos para o duro caminho de viver e morrer, na incerteza do desconhecimento, sobra a promessa científica de responder aos 'comos' e 'porquês', bem como às falibilidades humanas — o novo Homem. Mas guiar a vida na promessa será outra coisa além de um acto de fé? A fé nas respostas que a ciência dará, é certo, mas uma fé não obstante.

Mas da scienza nuova nada derivou que não fossem mais perguntas. E apenas assim poderia ser, e será, pois que o conhecimento humano é por definição condicional, imperfeito e incompleto. Como encontrar então a rocha da certeza securitária assente num método que se alicerça na constante dúvida? Mais uma ilusão. Uma fé que ficará sempre por cumprir.

A fé na ciência e no conhecimento poderá ter uma aparência científica, mas será ainda sempre uma fé. No entanto, o vazio moral que apregoa — porque não apregoa moral alguma que não seja uma falsa crença na Salvação tecnológica da Humanidade — não substitui o conteúdo teológico e mitológico da Fé anterior que os Iluminados julgaram poder apagar. A contrário, esse vazio apenas aprofunda o medo existencial ou seja, o medo da própria vida. E, quanto a isso, não há ideal securitário que resolva. 

Mesmo que na tentativa de atingir uma impossível sensação existencial de segurança se destrua a liberdade e todo o legado civilizacional Ocidental, da obsessão securitária nada virá para além da ditadura, do autoritarismo, quiçá do totalitarismo — agora tecnológico. Para viver-se com a insegurança, essa característica intrinsecamente humana de quem é consciente da sua própria perenidade, a única solução é mesmo a de compreendermos que a vida será sempre, seja sob que roupagem for, um salto de fé. Nas palavras de Jacobi, um salto mortale

Comentários