A CLAREZA DO VAZIO

 


Este artigo, subscrito por tantos distintos vultos da nossa praça — alguns meus conhecidos, outros amigos mesmo — é um bom exemplo do mau serviço que, apesar das boas intenções (que acredito serem profundamente genuínas), prestam à ordem liberal que intendem defender.

Desde logo, falha no objectivo: dizem nas últimas linhas advogar uma “clareza” que eles próprios não seguem: lendo o texto não se compreende quem serão afinal os inimigos do liberalismo — com a excepção de Órban que, apesar de não conhecer com profundidade, tendo a concordar. Mencionam umas coisas sobre discordarem de política identitária, bem como que, e cito, “Trump não é... Reagan”, mas não afirmam que este seja contra a ordem liberal. No entanto, mesmo sem acusação, fica implícita a ideia. Menos outro ponto para a “clareza”.
Aliás, a falta de clareza segue naquilo que parece ser o mote do artigo: a oposição à possibilidade de que “o espaço não socialista [se deixe] confundir com políticos e políticas que menosprezam as regras democráticas, estigmatizam etnias ou credos, acicatam divisionismos, normalizam linguagem insultuosa, agitam fantasmas históricos, degradam as instituições”. Isto será para quem? Não dizem. Mas como logo de seguida passam para a constatação factual de que Trump não é outra pessoa além do que Trump, mesmo de forma pouco clara, fica, lá está, implícito que poderá ser para ele.
Aquilo que a inteligência mediática portuguesa parece não compreender, o que é grave, resume-se em dois pontos: primeiro, o que eles julgam ser um ataque às instituições não significa que o seja de facto. Por exemplo, eu não defendo Donald Trump porque ele é contra a ordem liberal, eu defendo-o porque quero defender a ordem liberal. Ou seja, para mim, e partindo do pressuposto que o desígnio deste artigo é a defesa da ordem liberal, do meu ponto de vista os ilustríssimos signatários deveriam era estar a aplaudir o Donald Trump.
No entanto, não o fazem e, como sempre, do alto do seu pedestal de auto-intitulada defesa dos princípios morais liberais dos quais se imaginam donos, acusam, pelo menos de forma encapotada, Donald Trump de fazer parte dessa pandilha que conspira contra a ordem liberal.
Mas essa interpretação não é a Verdade. Não passa de uma opinião — a deles — altamente contestável, seja de uma perspectiva empírica e histórica, seja teórica ou filosófica. Aliás, os únicos iliberais aqui são precisamente estes distintos articulistas: porque, para eles, os liberais são eles e os que pensam como eles e mais ninguém.
Pior: revela um viés grave e que empobrece a “análise”. No fim, repetem os slogans que a superfície mediática não se cansa de publicar sem expor grande coisa para além de, talvez, uma certa fragilidade sentimental ofendida pela violência dos tempos correntes. Mas há mais vida, e informação, para além da mainstream media, vida cujo desconhecimento prejudica a qualidade da interpretação da realidade, aqui bem evidente neste artigo.
Depois, segundo ponto, o artigo enferma, mesmo que inconscientemente, do mesmo erro de sempre e ao qual eu estou farto de aludir: o indivíduo liberal não é uma abstração teórica que paira no éter racionalista da filosofia Kantiana, estilo o indivíduo Rawlsiano na Posição Original.
Não, o indivíduo liberal, sendo homem — uma pessoa, portanto — é feito de carne e osso, de ideias e vontades, de princípios e valores. Tem uma identidade contextualizada cultural e socialmente. Acharem que defendem o liberalismo sem defender a cultura e os valores que sustentam os princípios liberais não serve para rigorosamente nada: sem pessoas, não há ideias — e os princípios apenas reflectem a cultura de uma comunidade.
Pretender que não existe um ataque iliberal, até anti-democrático, por parte da esquerda identitária à ordem liberal seria apenas cegueira. Imagino que não o façam, mas esquecem-se permanentemente de o referir. E pretender que se defende a ordem liberal advogando uma não-identidade baseada na abstração de princípios que nem sequer articulam, lamento, mas é apenas um mau serviço à defesa da democracia liberal.
Defender a ordem liberal implica defender também um modos vivendi, uma tradição (liberal), uma cultura (liberal) e os princípios fundamentais da ordem liberal: liberdade de expressão, igualdade perante a lei (não discriminação), livre troca assente na propriedade privada.
Politicamente, não tenho dúvidas: prefiro impreterivelmente os rudes advogados destes princípios, desta tradição, desta cultura — como Trump — do que os ilustres e sensibilíssimos amigos que parecem nem sequer conseguir vislumbrar onde o verdadeiro adversário da ordem liberal está.

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