O inverno do nosso desconfinamento



Aproxima-se o Outono-Inverno mais negro da História dos últimos anos da Saúde Publica em Portugal e do SNS em particular e a culpa não vai ser da Covid19. Irá, com certeza, ser o bode expiatório mas não terá a virulência suficiente para apaziguar a revolta dos doentes, dos familiares e de muitos de nós. Tampouco irá servir para justificar a perpetuação histérica duma estratégia, cuja vantagem ainda está por provar mas cujas consequências sociais, económicas e na nossa saúde colectiva já estão à vista e se agigantam a cada dia.
O que a senhora ministra decretou ontem é grave! Muito grave e sintomático do descontrolo, do mau aconselhamento, da arrogância, da gritante insensibilidade e do profundo desconhecimento da dinâmica dos Serviços de Saúde em Portugal, da malha social do nosso país, das necessidades de saúde do nosso povo e, principalmente, uma absoluta falta de respeito e de empatia para com os profissionais de saúde em geral e para com a classe médica em particular.

Cancelar toda a actividade não urgente
Com que direito
Com que fundamento?
Desde quando a um ministério é permitido decidir que doentes devemos ou não tratar?
Em boa hora o nosso bastonário tomou uma posição pública, clara e inequívoca a este respeito.

Agora é chegada a nossa vez!

Estão a morrer doentes e outros há deixados, paulatinamente, ao abandono porque o seguimento telefónico não basta, a telemedicina tem as suas limitações e um médico deve estar na linha da frente no tratamento de todas as afecções e não apenas da Covid19.
Para cada doente que sofre, a sua doença é a mais importante e, contudo, há doentes (a maioria) que por sentido cívico e solidário se têm resignado e entregado, abnegadamente, ao sofrimento porque julgam ser essa a sua obrigação, não devendo incomodar o médico assistente e muito menos sobrecarregar o SNS.

Ora bolas!

Somos médicos ou tecnocratas?
E somos homens e mulheres livres e competentes ou somos seguidistas covardes e cegos?
Um médico não é um telefonista ou é?
A semiologia ainda é o pilar da nossa práxis ou não é?
A relação médico-doente precisa do olhar, do toque e de afecto ou não precisa?
E a coragem? Faz ou não parte das virtudes de quem abraça esta profissão?

Até quando nos vamos submeter às directrizes erráticas e erradas do ministério e da DGS?
Até quando vamos manter o nosso silêncio cúmplice e deixar quem mais precisa e jurámos servir, sucumbir ao medo e ao isolamento que disfarçados de prudência e de protecção os votam ao abandono?

Medo todos sentimos mas os nossos doentes exigem que o superemos e que tomemos de uma vez as rédeas da situação.

Temos que sair deste torpor porque a única razão para a subida/manutenção dos números de “infectados” em Lisboa e Vale do Tejo (LVT) é a testagem desenfreada, erradamente designada por rastreio e que, sem critério clínico sequer epidemiológico, foi decidida sabe-se lá com que intuito - científico não foi certamente.
Não há nenhum surto!
Antes a testagem errática, quiçá inconstitucional porque já não estamos em Estado de Emergência e porque decretada por despacho levanta também questões médico-legais - tratando-se de um procedimento médico necessita do consentimento informado dos visados.
Não há nenhum surto!
Antes a testagem agressiva em “clusters” assintomáticos de bairros sociais, estaleiros, fábricas e empresas porque sim, porque o patrão decidiu, o autarca pediu, porque existem testes com fartura ou porque existe um desejo frenético de entrar para o quadro de honra dos países que mais testam?
Mas isto é uma competição de bom comportamento social?
Ter-se-à a ciência vendido à política e à pressão mediática
Ou será que estamos perante uma experiência perversa e ninguém me informou?
Não há surto nenhum!
E a paulatina e consistente diminuição dos internamentos, dos doentes críticos bem como dos óbitos o atestam.

E os testes Rt-PCR, porque demasiado sensíveis têm demasiado ruído para serem usados como teste exclusivo no diagnóstico de uma infecção fora do pico epidémico e muito menos para rastreio de infectados - O próprio Kary Mullis, o Nobel da Química que desenvolveu o teste, para tal advertiu as comunidades científica e médica precisamente por causa do número significativo de falsos positivos e falsos negativos associados a este tipo de teste.

Nesta fase da progressão da curva epidémica o que já devia estar a fazer-se eram testes de imunidade sistemáticos, cegos e aleatórios numa amostragem representativa da sociedade portuguesa, porque urge perceber em que pé estamos no que à imunidade colectiva concerne e porque o saco das gripes e das constipações vai regressar de férias.

A verdade é que além de estarmos a comprometer a actividade assistencial a outras patologias estamos a comprometer o desenvolvimento da imunidade não só ao SARS-Cov2 mas aos outros patogénios.
Aproxima-se um outono-inverno negro se continuarmos impávidos e coniventes com o erro e a incompetência.
Será que o medo tem como efeito secundário a amnésia selectiva?
Acaso é esta a primeira pandemia que nos assola?

Será que o vírus nos fez esquecer como se interpreta um gráfico, o que é uma curva de Gauss, o que é uma quarentena, quais os postulados para o rastreio e o diagnóstico em Infecciologia e de como funciona o nosso sistema imunitário?
Será?

Estamos a cair numa insanidade quase infantil.

Fomos prudentes e lúcidos ab initio e em pleno pico mas agora estamos a permitir que o caos se instale insidiosamente porque a prudência deu lugar ao medo e porque pusemos o espírito científico na prateleira e a dúvida sistemática na gaveta.
Por medo estamos a permitir que os políticos se imiscuam na nossa prática e descaradamente decidam se podemos trabalhar e, não tarda, como devemos tratar os nossos doentes e as doenças.
Fizemos tudo certo mas estamos a começar a fazer tudo errado

Os Velhos do Restelo pró-Covid e os profetas da segunda vaga que fiquem em casa à espera mas deixem os que querem e têm a coragem de ser Médicos e o são por paixão e por vocação, fazerem o que melhor sabem fazer: cuidar, aliviar, curar e salvar vidas.

Está na hora de dar um murro na mesa e de desconfinar a nossa honra, o discernimento, a actividade assistencial, o SNS e principalmente o livre arbítrio - o nosso e o dos nossos doentes.

Lisboa, 8 de Junho de 2020
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Margarida Gomes de Oliveira
Médica Anestesiologista OM 34309

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